Distúrbios da função auditiva e sua associação com disfunção endotelial em crianças e adolescentes com anemia falciforme

Abstract

Introdução: a anemia falciforme (AF) é uma doença hematológica caracterizada pelo processo inflamatório crônico vascular e disfunção endotelial (DE). Há uma lacuna na literatura quanto a prevalência de prejuízos auditivos na população pediátrica com AF, além de inquietações acerca da patogênese de possíveis alterações no sistema auditivo decorrente do estado pró-inflamatório da AF. Objetivos: o objetivo primário foi descrever a prevalência da perda auditiva sensorioneural (PASN) e testar a associação com disfunção endotelial. Os secundários foram: descrever a presença de sintomas otoneurológicos e sua associação com disfunção endotelial em crianças e adolescentes com anemia falciforme; e investigar o sistema auditivo periférico e central nessa população, com intuito identificar a presença de “perda auditiva oculta” e testar associação com disfunção endotelial. Método: estudo transversal, analítico envolvendo 52 crianças e adolescentes com AF e 44 aparentemente saudáveis – grupo comparação (GC); por amostra de conveniência, ambos os grupos com idades de 6 a 18 anos. Nenhum dos participantes tinha comorbidades associadas (síndromes genéticas, obesidade, diabetes, hipercolesterolemia, acidentes vascular cerebral), e todos apresentavam ausência de problemas otológicos crônicos, histórico de drogas ototóxicas. Foi realizada a coleta de dados do prontuário sobre dados clínicos referentes à AF; entrevista audiológica, avaliação da função endotelial com uso de ultrassonografia para avaliação da vasodilatação mediada por fluxo (VMF); análise do perfil lipídico e marcadores inflamatórios séricos; avaliação auditiva utilizando audiometria tonal liminar, imitanciometria (timpanometria e pesquisa dos limiares do reflexo acústico contralateral, emissões otoacústicas produto de distorção (EOAPD), potenciais evocados auditivos de tronco encefálico (PEATE), potenciais evocados auditivos de longa latência (P300). Resultados: quinze (28,8%) dos participantes com AF apresentaram PASN e nenhum participante do GC. Análise de regressão logística mostrou associação entre DE e PASN independentemente do perfil lipídico e das características da AF [95% intervalo de confiança] = 0,614 [0,440–0,858]; p = 0,004). Sintomas otoneurológicos (zumbido e vertigem) foram predominantes no grupo AF em comparação ao GC (46,4 versus 15,4%; p = 0,006), com correlação negativa entre o valor da VMF e o tempo de evolução da vertigem (r = −0,432; p = 0,022); o grupo AF apresentou maior taxa de limiares do reflexo acústico elevados em comparação ao GC para todas as frequências e em ambas as orelhas (p<0.05). Houve diferença nas latências do PEATE com aumento da latência das ondas III e V (p=0,006 e 0,004 respectivamente) e intervalos interpicos I-III e I-V (p=0,015 e 0,018 respectivamente). Conclusões: a PASN é uma complicação presente em crianças e adolescentes com AF e está associada com DE. A associação entre DE, sintomas otoneurológicos e manifestações clínicas dos fenômenos vaso-oclusivos em crianças e adolescentes com AF sugerem que a agressão endotelial pode ser considerada como gatilho para o envolvimento vascular nas manifestações auditivas nessa população. Danos ao sistema auditivo de crianças e adolescentes com AF podem estar presentes envolvendo estruturas retrococleares, causando déficits funcionais, sem deterioração da sensibilidade auditiva.